15/12/2011

Alice Ribeiro 1958 “Cangerê: Cantata em Tupi” [Uirapuru LPU 1007]


Se você gostar de ouvir algo completamente fora do comum, apresentamos um disco maravilhoso e ao mesmo tempo uma experiência radical. Não se trata de música popular, apesar da forma estrutural ter origem nas canções populares do nordeste brasileiro. Tão pouco é um disco de música erudita como a conhecemos. Temos aqui, talvez a mais bela e estranha simbiose musical já gravada em nossa terra entre música erudita e música indígena produzida pelos povos brasileiros.

Diversos dos nossos compositores eruditos se empenharam em tentar criar um cenário musical exótico onde a música indígena apareceria como elemento principal ou secundário, alguns tiveram êxito. Poucos, no entanto, conseguiram transpor o exotismo e realmente inserir a música indígena propriamente dita na estrutura da partitura orquestral. Menor ainda é o número de compositores que nessa tentativa tiveram êxito.  Entre estes, Baptista Siqueira propôs uma das peças mais radicais, a “Cantata em Tupi Cangerê”.

Não é preciso citar a raridade ou importância histórica do disco. “Cangerê” foi lançado no formato long-playing em 10 polegadas em 1958 pela gravadora Uirapuru, pequeno selo que costumava lançar música folclórica e erudita brasileira. Este LP nunca foi reeditado em nenhum outro formato e permanece praticamente inédito até hoje. É uma felicidade postá-lo aqui.

“Cangerê: Cantata em Tupi” tem a bela voz da soprano Alice Ribeiro, cantora erudita do primeiro time, dialogando com o coro misto de Murilo de Carvalho e orquestra regida por José Siqueira.


Alice Ribeiro soprano que empresta a voz a “Cangerê”.

O ritmo marcante e o desenho harmônico inusitado são essencialmente música indígena, composta dentro da estrutura tradicional para grande orquestra e coro. As flautas, a percussão e especialmente os oboés na “Catira n° 3: Defumação” do primeiro lado do LP, são exemplos geniais da criatividade do maestro Baptista Siqueira. Em alguns momentos a música é dissonante e mesmo agressiva, mas se disposto a degustar com atenção, você se surpreenderá com sua beleza. Há chuva, o turbilhão de sons da floresta, cascatas no meio da mata, pássaros, cantos rituais sagrados e cantos de guerra. Além da orquestra tradicional foram usados também instrumentos musicais indígenas como Iuxê, Inkê e Arremêdo de Inambú e Arremêdo de Jacutinga, usados nas invocações dos espíritos dos Caboclos e Iaras. Talvez sejam as primeiras gravações destes instrumentos na discografia brasileira.

Segundo o texto da contracapa, a palavra “Cangerê” foi registrada pela primeira vez pelo missionário francês Jean de Lery no século 16, e se refere à religião dos índios, suas músicas, ritos e ritmos, numa época “anterior a chegada do elemento negro ao solo do Brasil”.

O texto da música evoca lendas sobre a criação do universo segundo a nação Caraíba, e foi escrito em língua Tupi. Apenas a faixa “Catira n° 6: Confraternização” tem letra em português citando palavras e termos na língua indígena.

Em 1959 “Cangerê” ganhou o prêmio “Cidade São Sebastião” como melhor composição erudita do ano, e Alice Ribeiro ganhou o mesmo prêmio como melhor intérprete.

Muito mais do que curiosidade musical, “Cangerê” é uma obra de arte verdadeiramente brasileira que deveria ser resgatada pelos pesquisadores e maestros e voltar a ser executada pelas orquestras do país. Sem esse resgate uma parte importante da história da nossa música estaria perdida. Trata-se de uma bem sucedida ousadia musical, do compositor, pesquisador, escritor, musicólogo e maestro paraibano Baptista Siqueira, autor de diversos livros importantes sobre nossa música, que só poderia ter nascido por conta da bossa do nosso Brasil.

O excelente site Toque-Musical postou recentemente dois outros discos com a obra de Baptista Siqueira: “Cantata Ritual de Pescaria Caatimbó”, espécie de continuação também no selo Uirapuru, obrigatório para quem se interessou e gostou de “Cangerê: Cantata em Tupi” &  “Sinfonia Nordeste/Jandaia Poema Sinfônico” também da Uirapuru. Vale a pena conferir. O mesmo site também disponibilizou outro disco excelente da soprano Alice Ribeiro lançado em 1964 pelo selo Corcovado “A Voz, Na Canção do Brasil” que também merece sua atenção.

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01 Catira n. 1 “Evocação à Tupã”
02 Catira n.2 “Evocação à Iara”
03 Catira n.3 “Defumação”
04 Catira n.4 “Ritual do Cangerê”
05 Catira n.5 “Exaltação à Terra”
06 Catira n.6 “Confraternização”
07 Catira n.7 “Encerramento”
Este disco é um presente do site Bossa Brasileira e não pode ser comercializado.

4 comentários:

Renê Dióz disse...

que tesouro. pessoas que se dispõem a manter links de preciosidades como essas na internet são seres iluminados. obrigado.

Carol disse...

Estou curiosíssima! Infelizmente, só a primeira faixa foi descomprimida, as outras todas estão dando erro. Será possível consertar? Obrigada!

Anônimo disse...

Blog maravilhoso! Muito obrigado por divulgar esses trabalhos maravilhosos!

Anônimo disse...

Muito obrigado, estou muito curioso em ouvir!
Saudações da Itália !