Três vozes. A fórmula se repete a partir da década de 1920, como fenômeno musical nas Américas. Do country ao jazz norte-americano, passando pela música mexicana, cubana, andina, paraguaia e brasileira, todo o continente se comoveu com a formação de três vozes se irisando em matizes diferentes.
Dentre a infinidade dos trios vocais da música universal, merece destaque o Trio Nagô, que no Brasil, ao lado do Trio Irakitan, foram os melhores exemplos na arte de vocalizar em trio. Foi o Trio Nagô quem desbravou o caminho e modelou os padrões dos arranjos adotados mais tarde pelos outros trios brasileiros, inclusive o Irakitan. A fórmula musical soava mágica, misturava o som dos trios latinos com o som do agreste, com as histórias dos poetas repentistas, dos violeiros, pescadores e jangadeiros de olhar mareado, cantando mistérios e prodígios, valentes como cangaceiros.
No final da década de 1940, em Fortaleza no Ceará, o alfaiate Mário Alves costumava receber dois amigos pelas manhãs em sua pequena loja de costuras, para prosear e cantar. Mário cortava e costurava cantando, enquanto os amigos Evaldo Gouveia e Epaminondas de Souza o acompanhavam com voz e violão. A coisa não passava de brincadeira. Mário encerrava o expediente e voltava para casa, enquanto Evaldo e Epaminondas esticavam a cantoria até altas horas nos botecos de Fortaleza. Um dia alguém os ouviu cantando e os indicou para uma audição na rádio local. Pouco tempo depois, estavam no Rio de Janeiro representando o Ceará no programa do César de Alencar na Rádio Nacional. A apresentação lhes rendeu um contrato com a Rádio Jornal do Brasil no Rio de Janeiro. Era 1950.
Trio Nagô em fotografia promocional da gravadora Decca na França.
Dois anos depois, já haviam se apresentado nas mais importantes casas do Rio e de São Paulo e assinado contrato com a Rádio Record. Foram lançados diversos discos de 78 rotações e iniciaram as turnês nacionais. Os primeiros long-playings saíram pelas gravadoras Rádio, Sinter e Continental - mais tarde gravam também pela RCA Victor. Na TV Record, ganham programa próprio e fazem muito sucesso, com direito a fã-clubes de garotas gritando e suspirando por Evaldo e Epaminondas, os galãs boêmios do trio.
Acompanhando o êxito dos trios internacionais, fizeram turnês no México, Argentina, Uruguai e outros países da América Latina. Evaldo que tinha medo de avião - ia de ônibus para os shows pelo Brasil enquanto os companheiros voavam - agora era obrigado a cruzar os mares pelo ar. Nos Estados Unidos, gravaram programas de TV e discos de 78 rpms. Em seguida na Europa, obtêm êxito na França, Inglaterra e Portugal. Com a repercussão da temporada de Paris, o produtor Max de Rieux do selo Decca, contrata o trio para a gravação de mais uma coleção de canções lançadas em discos de 10 polegadas, compactos e 78 rpms. Gravações inéditas no Brasil. Na volta, são ovacionados e condecorados por autoridades pela divulgação da nossa cultura no exterior. Mesmo famoso, Mário Alves continua a trabalhar desenhando e costurando também para o Trio.
Esta história de sucesso que possui ainda outros capítulos, hoje corre o risco de ser esquecida. O Trio Nagô se quer é lembrado pelos historiadores. Depois de uma breve separação no final dos anos 50, o Trio se refez no início da década de 60, gravando alguns LPs, onde adotaram o repertório e a harmonia da bossa-nova com brilho, mas já sem o sucesso. O Trio Irakitan ocupou o posto com dignidade e qualidade. Evaldo Gouveia tornou-se compositor respeitado, fez história na série de sambas-canção escritas em parceria com Jair Amorim - são os autores de “Alguém Me Disse”. De Epaminondas e Mário pouco se soube, o Trio Nagô encerrou suas atividades em meio a desentendimentos e pouca visibilidade.
Em audição com o produtor francês Max de Rieux da Decca, Evaldo ao piano.
Neste disco, lançado pela Continental em 1955, o Trio Nagô é registrado na sua melhor forma. Estão aqui as clássicas “Aquarela Cearense” de Waldemar Ressurreição e “Mocambo de Paia” de Gilvan Chaves. Dorival Caymmi não poderia ficar de fora e comparece numa belíssima interpretação de “Dora”. Assim como Ary Barroso, sua “Terra Seca” [“...trabaia, trabaia negô...”] ganha versão definitiva e sua “Na Baixa do Sapateiro” também é interpretada com brilho. Vale destacar “Prece ao Vento” de Alcyr Pires Vermelho, Gilvan Chaves e Fernando Luiz, com assovios e efeitos para lembrar o vento. O conjunto que os acompanha também merece atenção, com percussão, piano, órgão, baixo acústico e acordeon, tudo muito discreto e eficiente. Ouve-se até uma guitarra elétrica em alguns momentos, saturada com dissonância inacreditável para a época... Seria obra do Evaldo Gouveia? Difícil dizer, mas a guitarra exótica está lá.
A fantástica capa deste disco foi desenhada pelo argentino Paez Torres, artista gráfico radicado no Brasil. Este é o Trio Nagô, um dos maiores mistérios da história da música brasileira.
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Trio Nagô em foto do Stúdio Adolfo, São Paulo.
01 Prece ao Vento [Alcyr Pires Vermelho, Gilvan Chaves, Fernando Lobo] toada
02 Mocambo de Paia [Gilvan Chaves] toada
03 Terra Sêca [Ary Barroso] samba
04 Dora [Dorival Caymmi] samba
05 Aquarela Cearense [Waldemar Ressureição] samba
06 Na Baixa do Sapateiro [Ary Barroso] samba
07 Louco da Praia [Graça Batista, Alvaro Castilho] canção
08 Ladeira do Amor [Graça Batista, Amado Régis] corrido
Este disco é um presente do site Bossa Brasileira e não pode ser comercializado.
o Trio Nagô canta “Saudades da Bahia” de Dorival Caymmi no filme “Chico Fumaça” dirigido por Victor Lima, com arranjos para orquestra de Radamés Gnattali.