01/12/2011

Ataulfo Alves, Jorge Fernandes, Léo Peracchi, Lenita Bruno & Heitor dos Prazeres “Melodias de Terreiro, Pontos e Rituais” 1955 [Sinter SLP 1041]


Porque “macumba” também é bossa. A palavra “macumba” entra em nosso texto porque no início da história da indústria fonográfica brasileira ela classificou um conjunto de ritmos e batucadas que definiam um determinado gênero musical, da mesma forma que os termos samba, ou choro. Longe de qualquer conotação negativa atribuída mais tarde, o gênero “macumba” por incrível que pareça, sempre foi muito gravado no Brasil, existem diversos discos de 78 rotações classificados como “macumba” onde nos selos aparecem nomes de ritmos diferentes como curimba, batuque, ponto-cruzado, ponto-cateretê, batuque de mina e outros.

Quando colonizaram o Brasil com milhões de escravos africanos, os portugueses não faziam idéia que estavam criando a maior nação africana fora da África. Um dos regimes mais longos e brutais de escravidão na história recente da humanidade acabou por criar uma herança cultural multifacetada onde o africano, o índio e o europeu formaram um único povo.

foto de Rita Ruiz

“Para a semana vou fazer uma festança / Muito bacana para alegrar as crianças / Mamãe Oxum criança é tudo pra mim / Cosme, Damião e Doum, Crispiniano e Crispim...”

É uma grande alegria trazer este disco muito bacana para alegrar - como diz a letra da música - a nós, crianças que gostamos dos discos raros e estranhos da nossa brasilidade... “Melodias de Terreiro, Pontos e Rituais” é uma coleção de músicas gravadas por diversos artistas, lançada em disco de 10 polegadas pela gravadora Sinter no ano de 1955.

Com muito carinho e respeito para com a Umbanda e todos os outros cultos afro-brasileiros que fazem do nosso país uma terra de espiritualidade, magia, ritmo e sensualidade. Onde as noções de sagrado e profano do pensamento ocidental ganham licença poética.

Fácil concluir que o próprio samba também nasceu nos terreiros. A religião afro-brasileira é totalmente musical, música e espírito formam uma coisa só. Não existe culto sem música.

Desde as primeiras gravações realizadas pela Casa Edison do Rio de Janeiro no início do século XX, uma quantidade significativa de discos em 78 rpms com músicas extraídas dos cultos afro-brasileiros foi editada, em sua maioria, gravadas com autenticidade. Havia artistas que faziam carreiras musicais apenas gravando músicas do gênero “macumba” e outros, como os grandes sambistas da época, que nunca deixaram de gravar e compor os tais sambas “de terreiro”.

O sambista e pintor Heitor dos Prazeres.

O time neste pequeno disco da gravadora Sinter é “de peso”, sambistas da primeira linha como Ataulfo Alves e Heitor dos Prazeres com suas respectivas “Pastoras” puxam a fila. E contam com o apoio de uma orquestra completa arranjada e conduzida pelo mestre Léo Peracchi, que trouxe a esposa, Lenita Bruno para pontuar com sua voz treinada nos salões de música erudita em duas faixas - há uma citação a Villa-Lobos em linguagem de samplerPeracchi faz corar arranjadores e DJs atuais. E para completar o time Jorge Fernandes, cantor de sucesso na época, infelizmente esquecido, comparece em quatro das oito faixas do LP.

Enquanto Ataulfo Alves e Heitor dos Prazeres são considerados grandes nomes do samba e tem suas obras sempre apreciadas e estudadas, Jorge Fernandes ainda é um ilustre desconhecido. Poucos sabem que foi ele quem gravou pela primeira vez a canção “Meu Limão, Meu Limoeiro” retirada do folclore para as rádios com grande sucesso lá na década de 1930. Jorge recebeu educação privilegiada com inclinação para as artes, era moço de família tradicional, se formou em arquitetura, mas possuía talento incomum para a escultura, arte a que se dedicou enquanto se tornava cantor de rádio. No início concorria com o sucesso de Carlos Galhardo e Silvio Caldas, mas diferente destes foi encontrar seu “estilo” primeiro na música folclórica e depois na música “de terreiro”, da qual gravou vários discos até a década de 1970.

O cantor, escultor e arquiteto Jorge Fernandes.

Na contra capa de “Melodias de Terreiro” há descrições detalhadas sobre as faixas e informações pouco comuns nos discos da época, como a data exata da gravação [Julho de 1955] e o nome dos técnicos que a fizeram - Armando Dulcetti e Roberto de Castro. “Nesses cantos de origem litúrgica e sentimental, estão entrelaçados a poesia do europeu, em sua religiosidade católica, a súplica e o lamento dos negros africanos, sob jugo do cativeiro, e toda nobreza dos ameríndios, com sua índole guerreira e selvagem.” “... nesta fonte tão rica de motivos, que foram recolhidos, selecionados, ambientados, os pontos rituais, curimbas e danças que compõem este long-playing. Houve nesta escolha, o cuidado de agrupá-los e cruzá-los dentro da mesma força a que cada qual está ligado, evitando assim, o chamado “choque de forças”.” - diz o texto anônimo.

Oxum, Xangô, Ogum, Cosme e Damião, Crispim e Crispiniano, Pai Joaquim de Angola, Ogum-Yara, Yemanjá, Caboclinho da Mata... São os Orixás e personagens que desfilam nas letras das canções.

O mestre Ataulfo Alves e seu violão.

A gravação obteve resultado exuberante. Os arranjos de Léo Peracchi normalmente geniais, ganham um contorno à mais, como nas linhas de metais e sopros em momentos onde se evoca o choro, ou mesmo o jazz, ou o fox norte americano, ou quando é o cavaquinho que aparece para marcar a cadência. Peracchi foi econômico, não há paredes de violinos, respeitou o silencio entre os toques dos instrumentos de percussão e criou uma mistura inusitada de samba, choro, “macumba” e canção popular com seu toque refinado. “Melodias de Terreiro” preserva o caráter de registro autêntico da música dos cultos afro-brasileiros, muito mais do que uma curiosidade musical estranha, sua ousada mistura cria uma estética que antecipa em décadas o som que se ouviria no tropicalismo e em toda a boa música contemporânea feita no Brasil hoje.

~~~

foto de Rita Ruiz

01 Aruanda [tradicional] Léo Peracchi & Jorge Fernandes
02 Agô-Iê [tradicional] Ataulfo Alves & Suas Pastoras
03 Oxum-Maré [tradicional] Jorge Fernandes, Lenita Bruno & Léo Peracchi
04 Nêgo Véio [tradicional] Heitor dos Prazeres
05 Congo [tradicional] Léo Peracchi, Lenita Bruno & Jorge Fernandes 
06 Pai Joaquim d'Angola [tradicional] Ataulfo Alves
07 Ogum-Yara [tradicional] Jorge Fernandes & Léo Peracchi 
08 Vamos Brincar no Terreiro [tradicional] Heitor dos Prazeres
Este disco é um presente do site Bossa Brasileira e não pode ser comercializado.

foto de Miriam Fichtner

Obra de Heitor dos Prazeres.

7 comentários:

Bruna Andrade disse...

Excelente o blog! Muito bom mesmo.
Parabéns!
http://simoneemboacompanhia.blogspot.com/

Thiago Mello disse...

Obrigado Bruna! Um grande beijo e volte sempre! :)

boebis disse...

Gostei muito os textos de esse blog. E sou um grande fan de Heitor dos Prazeres e Ataufulos Alves entao estou muito feliz :D . Muito muito obrigado, de um francês que ama musica brasileira, que descubreu com blog como esse!

Unknown disse...

Muito bom texto, Axe!

Unknown disse...

Bom dia.

Sei que há anos nada mais é postado, porém, por gentileza, há chance de reativar link da obra Paulo Tapajós 1956 “Melodias Imortais de Joubert de Carvalho” [Sinter SLP 1082]?

Aguardo resposta.

Unknown disse...

Bom dia.

Sei que há anos nada mais é postado, porém, por gentileza, há chance de reativar link da obra Paulo Tapajós 1956 “Melodias Imortais de Joubert de Carvalho” [Sinter SLP 1082]?

Aguardo resposta.

Anônimo disse...

Muito obrigado